Continuação do percurso pelos confins de Montmartre, provavelmente o bairro mais enigmático de Paris, pelo seu ambiente descontraído, libertário, boémio, e cultural, tão diferente da monotonia haussmanniana de régua e esquadro e da monumentalidade divina do resto da cidade... Aqui de monumentalidade divina só mesmo a basílica de Sacré Coeur, e é para lá que caminhámos. Chegados à rue de Saules, avistámos a basílica pela estreitíssima rua Saint-Rustique, mas decidimos fazer um desvio para sul para conhecer o Espace Dalí Montmartre na rua Polbot. É um museu com 330 obras iluminadas por luzes em movimento! Um mimo surrealista...
De volta às ruas estreitas com a cúpula da basílica ao fundo - provavelmente a imagem mais repetida nos postais de Montmartre -, caminhámos em direcção à igreja St-Pierre de Montmartre. É uma igreja que fica literalmente na sombra de Sacré Coeur, é pequena e simples, mas no entanto muito simbólica. Foi consagrada em 1147 e é por isso uma das mais antigas de Paris. O facto de ter sido construída no local onde existia um templo romando dedicado a Marte, originou um simbolismo sagradíssimo que acabou por ser usado na lenda de Saint-Denis. Algumas das colunas desse templo podem ser vistas no interior...
Em frente a esta pequena igreja, fica a praça mais importante e popular de Montmartre, a Place du Tertre. É também a mais elevada de Paris, facto que nada interessa, comparado com o antigo local de execuções que se tornou no século XIX um museu ao ar livre, pois era aqui que os artistas da colina expunham as suas obras. Hoje essa função mantém-se, e juntamente com os restaurantes icónicos, a praça tem um intenso e constante movimento de pessoas. E por falar nos restaurantes, destaque para o La Mère Catherine de 1793, onde surgiu o termo Bistro que designa o típico café parisiense, mas é na verdade 'rápido' em russo (conta-se que na invasão russa, os cossacos vinham para aqui gritar "Bistro" o tempo todo).
Da Place du Tertre, iniciámos um passeio pela encosta Norte de Montmartre. É menos turística, mas possui lugares fantásticos, que definem muito do carácter do bairro. Um deles é o Museu Montmartre que fica numa das maiores mansões da zona, já que todas as casas são bem pequenas. Foi nesta mansão branca com um belo jardim, que viveu o actor Rosimond, que juntamente com Molière, morreu durante a peça de teatro 'O Doente Imaginário'. Antes que se tornasse um museu dedicado à história de Montmartre, serviu ainda de estúdio a vários artistas, incluindo Renoir.
Virando para a rua de Saules, as casas típicas da encosta Sul começam a dar lugar a bonitas moradias antigas cobertas de heras, lembrando os vilarejos franceses. Aliás, esta zona, mais isolada do movimento turístico de Montmartre, chega a parecer em muitos aspectos os bairros de Butte-aux-Cailles e Butte-Bergeyre. Desta rua avista-se as últimas vinhas de Paris. São as únicas ainda existentes, e por isso em Outubro, o começo das vindimas é aqui motivo para uma grande festa...
Seguindo para Oeste, damos com o famoso Au Lapin Agile. Já se chamou Cabaret des Assassins, mas a famosa pintura da autoria do humorista André Gill, com um coelho a fugir do tacho, acabou por alterar a denominação deste clube nocturno. Muito famoso por ter sido ponto de encontro de muitos intelectuais, e de muitos artistas armados em intelectuais. Há um episódio que me fascina particularmente: o romancista Dorgelès, farto da fama da arte moderna, e das discussões com artistas como Picasso, resolveu pregar-lhes uma partida, e amarrando um pincel à cauda de um burro, pegou nos rabiscos e expôs a tela numa galeria, com o nome 'Pôr-do-Sol no Adriático'! Ninguém deu por ela...
Para a semana há mais sobre Montmartre...